Entrevista com o Núcleo Bailarino-Pesquisador-Interprete (BPI)

 

Entrevista realizada no dia 1° de abril de 2021, através da plataforma Google Meet com as integrantes Larissa Turtelli, Paula Caruso e Mariana Floriano, sobre os processos criativos do Núcleo BPI.

Sobre o BPI:

O método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI) foi criado por Graziela Rodrigues após anos de formação e de experiências nacionais e internacionais em Artes Cênicas. A elaboração do Método começou na década de oitenta quando Rodrigues, em resposta aos seus questionamentos pessoais como intérprete, buscava estabelecer meios próprios para o desenvolvimento de suas criações artísticas. De acordo com relatos (aulas, palestras, cursos e reuniões do Grupo de Pesquisa) e publicações (vide lista de publicações do método BPI) de Rodrigues, não houve a intenção premeditada de formular uma metodologia particular. No entanto, ao fim de alguns anos de imersão e investigação, a frequência e a pertinência de determinadas ferramentas utilizadas em seus processos criativos apontavam um caminho que poderia ser percorrido não só por ela, mas também por outros intérpretes. O ano de 1980 marca o momento em que esta metodologia começa a ser estruturada e, em 1987, se dá a sistematização do método BPI, momento em que Rodrigues começa a dirigir outros intérpretes.

Sobre as integrantes:

LARISSA TURTELLI

É artista da dança, docente e pesquisadora do Instituto de Artes da Unicamp. Iniciou sua especialização no método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI) em 1992, tendo desde então realizado diversas produções artísticas, workshops e pesquisas de campo de realidades brasileiras a partir desse método.

C.V. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4795583U9

MARIANA FLORIANO

Bailarina-Pesquisadora-Intérprete, professora de Dança e produtora Cultural. Doutoranda em Artes da Cena pela UNICAMP. Mestra em Artes da Cena (2014), UNICAMP. Graduada em Dança (2009) pela UNICAMP.

C.V. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4260135P5

PAULA CARUSO

É bailarina-pesquisadora-intérprete, pesquisadora e professora Doutora do curso de Dança da UNICAMP. Possui licenciatura plena em História pela FEPI, Itajubá-MG; e Bacharelado em Dança, Mestrado em Artes, Doutorado em Artes da Cena, todos esses três cursos pelo Instituto de Artes da UNICAMP, Campinas- SP

C. V. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4148536P2

 

 

Como vocês definiriam o processo criativo do BPI em três palavras?

Larissa: Eu pensei nas palavras “corpo”, “potência” e “coletividade”.

Paula: Eu pensei em “intenso”, “transformador” e “originalidade”.

Mariana: Eu segui os eixos do método e pensei em “inventariar”, “coabitar” e “nuclear” no sentido de “estruturar”. 

É muito interessante observar como cada uma de vocês pensou em palavras tão diferentes, mas que de alguma forma estão todas conectadas. A segunda pergunta que gostaríamos de fazer é se o núcleo se considera um grupo de dança, dança-teatro, teatro físico ou vocês não atribuem um rótulo ao seu trabalho?

Larissa: Eu tive essa discussão com a Graziela em um dos nossos trabalhos anteriores, sobre como nós iriamos nomear esse espetáculo para divulgação na época. As palavras carregam uma história, então se você traz uma palavra, ela já carrega consigo diversas associações e referências. Quando falamos dança, isso desperta um imaginário muito da dança clássica, da dança de salão, uma dança que não tem nada a ver com a dança que fazemos. Já quando nós falamos “dança-teatro” tem essa referência da dança-teatro de Pina Bausch, que também não tem nada a ver com o trabalho que nós fazemos. Quando falamos de “teatro-físico” remete à mímica francesa e toda essa corrente da época, que também não é o que fazemos. Então na época que estávamos discutindo esse assunto, nós optamos por usar o termo “dança-teatro”, por que pensamos que esse termo pelo menos não remetia aquela dança que é só movimento, onde não há personagem, onde não há um conteúdo de uma maior comunicação. Por esse motivo achamos que “dança-teatro” era o termo que ficava mais próximo do que queríamos, mas muitas vezes nós usamos somente o termo “dança” também.

Mariana: É o que eu ia falar, nós já tivemos produções em que nos aliamos tanto aos editais de dança, como aos de teatro, porque vemos que ambos abarcam e aglutinam essas duas áreas. Nós estamos falando de intérprete e a outras questões que estão ligadas à essa criação de personagem, mas que tem um outro viés, onde essas duas coisas se juntam. Dentro dos trabalhos a gente tenta conceituar bem o que a gente está querendo chamar de intérprete, de personagem, de dança, de potencialidade e de atuação, que como a Larissa falou, não é nada de uma dessas coisas, mas que de alguma forma aglutina essas grandes áreas.

Paula: Eu sinto isso também, eu acho que o trabalho aglutina essas duas grandes áreas, mas é delicado a gente nomear, como a Larissa falou. Tivemos casos onde as produções foram chamadas de “dança-teatro”, mas é uma dança que é uma outra dança, bem diferente do que os outros trabalhos de dança fazem.

Antes da pandemia, qual era a frequência de encontro do grupo? Visto que todos os integrantes são mestres e doutores, como se dava o processo de encontro para prática e desenvolvimento dos projetos do grupo? Vocês tinham dias e horários fixos de encontro?

Larissa: A estrutura de trabalho do nosso grupo varia muito. Como o grupo existe há vários anos, já houveram épocas em que fizemos encontros fixos, de 15 em 15 dias ou uma vez ao mês, para apresentação das pesquisas ou para discutir algum texto. Nos últimos tempos, antes da pandemia, nós não estávamos com encontros fixos, nos encontrávamos apenas em situações específicas. Nós somos um grupo bem unido, então quando algum integrante ia fazer alguma produção todo mundo ia junto para ajudar e colaborar, nem sempre está todo mundo dançando junto, as vezes vai ter uma dança do mestrado de alguém, aí todo mundo que pode vai e auxilia nos ensaios e na produção. Nós sempre estamos nos juntando nos trabalhos individuais de cada um do grupo, porque o BPI ressalta muitas individualidades, então não é todo mundo igual, cada um tem seus projetos e a vai se juntando para auxiliar uns aos outros. Depois que tivemos o espetáculo “O Corpo como Relicário” em 2017, nós continuamos nesse esquema dos projetos mais específicos, nos juntando quando tinham havia a necessidade e durante os eventos.

Paula: Para completar o que a Larissa falou, o Relicário foi um caso bem específico que foi uma imersão de praticamente o grupo inteiro, onde ficamos mais de 7 meses na criação e nos víamos todos os dias, foi uma vivência muito intensa. De 2017 para cá, os encontros tem sido mais pontuais, seja para uma defesa de mestrado, doutorado, projetos individuais, espetáculos, ou como aconteceu ano passado quando houve o seminário “Artes da Cena” na pós-graduação, onde organizamos um compartilhamento temático, cada um falou um pouco da sua pesquisa e a Graziela nos deu um retorno. Nós temos essa ligação muito forte, então sempre tem essas trocas. 

Larissa: Teve também o encontro do Grupo BPI de Santa Maria, pois também há um grupo na Universidade Federal de Santa Maria, que é o Flávio que está organizando. O Flávio foi orientando da Graziela e a gente fez um encontro entre grupos de pesquisa nesse período.

Mariana: Eu só queria ressaltar isso, o fato de que é um grupo de pesquisa e que a gente desenvolve os projetos artísticos, as produções acadêmicas estão aí e nós mesmos sempre frequentamos as aulas da Paula, da Larissa e da Graziela, antes da licença dela, lá na UNICAMP, então esse contato como desenvolvimento, como pesquisa e como pesquisador individual, a gente sempre está próximo. E há os momentos de aglutinação para produção dos projetos artísticos e para eventos, assim como a Larissa e a Paula falaram. Esses momentos são de bastante intensidade, eu a Larissa agora estamos desenvolvendo um projeto, onde a gente se fala todos os dias, trabalhamos todos os dias juntas, sempre em contato com a Graziela. Quando a situação voltar ao normal, nós vamos voltar nessa relação de eu ir e fazer a aula dela, por exemplo. Há as intensidades e há os momentos em que a gente se dissipa. 

Percebemos no BPI uma busca por movimentações e teatralidades fundamentalmente brasileiras. Na opinião de vocês, há de fato no BPI essa procura por identidades plurais e inconscientes coletivos intrinsecamente brasileiros e interpessoais, através do movimento?

Larissa: Essa é uma questão que sempre nos vem. Não é uma questão da brasilidade, de nacionalismo, mas sim uma questão da identidade corporal e uma questão social do contato com essa realidade que está ao nosso redor. Já tivemos alunas, intérpretes de outros países e há uma que foi bem significativa, ela é do Equador e fez a pesquisa de campo dela aqui no Brasil. Nós começamos os laboratórios, mas nos laboratórios começaram a vir coisas da terra dela, do Equador, porque é essa identidade corporal e esse imaginário, esse inconsciente coletivo lá do lugar dela. Depois ela foi fazer uma segunda pesquisa de campo lá no Equador, dessa maneira já teve também uma aluna polonesa, onde também veio esse imaginário lá da Polônia. Um intérprete cubano, que também trouxe manifestações populares lá de Cuba. Então, tem a ver com essa identidade corporal que está na nossa memória e que vai além da nossa memória individual, tudo aquilo que o nosso corpo carrega. É mais nesse sentido dessa identidade corporal e muito forte uma questão social, nós fazemos questão de trazer esse lado social, de estar trazendo alguma questão sobre o que está ocorrendo no mundo para a cena.

Sobre os processos dramatúrgicos/coreográficos do grupo: de que forma se dá a criação/montagem de espetáculo a partir do personagem enquanto organização corpórea? Como o resultado da pesquisa se materializa e se organiza em forma de obra?

Larissa: Uma questão muito importante no processo do Método BPI é a presença do diretor, ele precisa ter uma diretora ou diretor, essa pessoa é fundamental para que se desenvolva o processo. A Graziela faz uma analogia dessa diretora como uma parteira, não é ela que vai dizer que bebê que vai nascer, mas ela está lá para ajudar o bebê a nascer. Isso quer dizer que o diretor não vai colocar os seus desejos, vontades e projeções em cima daquilo que o intérprete vai fazer, mas é ela que vai ajudar a puxar esse bebê, fazer ele nascer na hora que tem que nascer, porque se não há o perigo do bebê morrer lá dentro e não nascer, por isso precisamos dessa diretora para ir fazendo todo esse procedimento acontecer. Então, a personagem vai surgir a partir de um encontro do intérprete com a pesquisa de campo, essa pesquisa é fundamental no método, pois é quando a pessoa vai ter uma experiência de alteridade, está focada muito mais nas relações pessoais do que querer aprender aquela dança, ou aprender como se corta cana, ou aprender como se carreia o boi. É uma relação pessoal, sobre o que se estabelece ali e o quanto tem ali de identificação, de espelhamento e de conflito, essa relação da pesquisa vai acordar um monte de sentimentos dentro do intérprete e vai permitir que ele se abra para uma realidade que é maior do que a história pessoal dele, isso propicia que ele não fique só na sua história pessoal e trazendo para a cena só coisas pessoais. A partir disso, o interprete que se abriu para perceber outra realidade, vai começar a nuclear uma personagem, onde nós fazemos os laboratórios dirigidos, neles nós trabalhos os circuitos entre movimento, sensação, emoção e imagens, sobre como o movimento que eu faço é percebido e interpretado por mim. Dentro desses circuitos, desses fluxos de movimento, a diretora vai observando e vai colocando perguntas para ajudar o intérprete a perceber o que ele está fazendo e para pescar aquilo que ela vê que está mais integrado, aquilo que veio com mais força. A partir disso o corpo vai formando outros corpos, como uma mulher mais velha que tem as mãos sujas de terra, ou um corpo meio bicho, até chegar uma hora que todos esses corpos se juntam e formam uma nova coisa, que é a personagem. É como se não fosse você, como se você se mexesse e nem percebesse, estamos conscientes, mas somos um outro ser. Quando a personagem vem, nós começamos a pesquisar o que que ela veio para trazer, o que ela veio dizer e o foco passa a ser a partir da personagem, a história de vida dela, o que ela fez e o que ela é. A partir disso que a direção vai construir um roteiro para esse trabalho, a partir daquilo que foi mais significativo, nós abrimos diversas coisas durante o processo, mas o que vai ficar no projeto final é aquele resíduo, onde você tira tudo o que não é necessário até sobrar só aquilo que não sai mais, aquilo que fica, esse resíduo é o que vai ser usado para construir a dramaturgia do projeto. As personagens carregam consigo todo um contexto social, se for uma mulher andarilha do sertão ela está trazendo todas essas mulheres andarilhas do sertão junto com ela, é sobre essa potência do corpo coletivo.

Paula: É a partir do personagem que se delineia o roteiro, os objetos cênicos, cenários e falas. Quero citar o exemplo de “Diante dos Olhos”, um espetáculo que a Graziela dirigiu, onde a Larissa dançou junto de outra intérprete, a pesquisa se deu em terreiros de umbanda em Campinas. A proposta do BPI não é reproduzir a pesquisa, não é a mimese, a personagem é justamente a mistura do intérprete com o campo social.  Nesse caso elas pesquisaram terreiros de umbanda e haviam elementos de movimento e de sentidos claramente ligados à pesquisa no espetáculo final. A estética pode estar ou não mais próxima daquilo que foi pesquisado, por exemplo o “Interiores” que eu dancei, onde pesquisamos o círculo do divino em Pirenópolis, ali naquele espetáculo, haviam elementos bem mais próximos da pesquisa de campo, mas em outros como “Diante dos Olhos” isso não estava tão perceptível, porque a nossa proposta é justamente ampliar, o trabalho não vai falar diretamente o inventário da personagem e nem só do campo social, é sobre essa mistura e a forma como isso vai se dar depende muito de cada intérprete.

"DIANTE DOS OLHOS" – 1996. Com Larissa Turtelli e Daniela Kuhn. Direção de Graziela Rodrigues. Assistente de Direção de Ana Carolina Lopes Melchert. Pesquisa de campo: Realizada em 25 Terreiros de Umbanda da região de Campinas – SP

Mariana: É importante reforçar que tanto a construção do roteiro, como a construção coreográfica tem total ligação com a personagem e com o processo. Há um rebuscamento, um trabalho de iluminação e figurino, mas tudo está ligado aos laboratórios e ao eixo que conduz essa personagem. Não há floreios, é como a Larissa falou, é tudo muito residual, é aquilo que é necessário ser dito, somente aquilo que tem sentido diante de todo aquele processo criativo desenvolvido.

Larissa: O resultado também não é tal qual veio no laboratório para a cena. Depois que é levantado o material há todo um trabalho técnico, mas ele é um trabalho integrado, então quando eu elaboro tecnicamente eu vou fazer vários exercícios onde a direção vai me dar as orientações necessárias para tirar melhor proveito daquela imagem, daquela ideia proposta durante os laboratórios. Esse trabalho técnico potencializa a emoção e os sentidos. O de dentro para fora e o de fora para dentro vão se ajudando. Há muitos trabalhos técnicos, físicos mesmo para coreografar e refinar as movimentações com o objetivo de ampliar a comunicação com o espectador. Nós pensamos muito nessa comunicação, sobre como deixar claros os conteúdos a serem captados pelo espectador.

Na etapa de pesquisa de campo, percebemos que há uma escolha do intérprete sobre o grupo/lugar social em que ele irá desenvolver essa pesquisa. Também nota-se que há um recorte social expressivo e uma interseccionalidade muito grande dentre os grupos sociais já escolhidos para esse trabalho de coleta de informação. Desse modo, como se dá essa identificação e escolha de determinado tema/grupo social que vocês irão trabalhar durante aquele processo?

Larissa: A escolha é sempre do intérprete. A Graziela fala bastante que o intérprete tem que estar apaixonado por aquele lugar, você escolhe pela sua paixão, tem que ser um lugar que te dá tesão, que você quer ir, quer estar lá, quer estar com aquelas pessoas. Então não é uma escolha racional, é uma escolha do coração, uma escolha física, é uma atração. Pois quando a gente sente atração, quando sentimos amor e paixão, nosso corpo se abre e eu tenho que ir para esse campo com o corpo aberto, porque eu vou receber esse campo nos meus poros, no meu corpo e na minha mente. Então essa escolha é uma escolha bem do coração. Tem essa questão de escolher um local que tenha uma força de vida, eu vou escolher o que eu quero trazer para cena e para quem for assistir, e eu quero trazer uma força de vida. Eu posso ir lá para uma tragédia, para um buraco sem fundo, mas eu vou subir de volta e vou trazer de alguma maneira uma esperança, uma força de vida, nutrir esse lugar da resistência. Então se um intérprete chegar para mim e falar que quer pesquisar “tal coisa” e eu vejo que é uma coisa super deprê e que não gera nada, eu vou falar que não aconselho, porque ele vai estar alimentando dentro dele esse lado de buraco sem fundo. Então você vai pesquisar esse lado que traz essa força de vida, força de resistência, essas culturas que têm uma resistência frente a cultura dominante, uma resistência de manter uma identidade corporal, identidade cultural frente essa cultura dominante que quer apagar tudo, que quer massificar tudo. Então tem também esse critério, o intérprete chega com uma ideia e a gente avalia nesse sentido, de não ser algo que tem essa pulsão de morte, mas algo que leve para um lado de vida e de estar nessa força de resistência que fortalece a identidade, essa identidade cultural.

Mariana: Acho que dentro desses critérios é relevante também aqueles campos que o meu imaginário e expressividade é aberto, em que você está lá aberto indo para esse campo que você se identifique e chegando lá você encontra expressividade, resistência, vida e um imaginário. Então você está também entrando em contato com essa capacidade criativa que vai ampliar e potencializar o seu corpo no processo criativo.

Paula: Isso que a Larissa falou e Mariana completou, em dizer como é importante mesmo essa paixão e esse amor pelo campo, é fundamental. Sem isso o campo não acontece, não se desenvolve, e você não chega ao que a Graziela fala o “coabitar com a fonte”, esse encontro amoroso que é formado entre o pesquisador e o pesquisado. E é muito interessante, ela também escreve sobre isso, que quando você escolhe o campo muitas vezes você não tem consciência do porquê escolheu aquele campo, porque tem que ser aquele terreiro, aquele grupo que colhe uva, seja o que for. Às vezes durante o processo é que você vai percebendo que realmente você tinha uma identidade cultural corporal e que algo daquele campo estava próximo do seu inventário, as vezes nem está próximo da sua história pessoal, mas tinha uma identidade ali corporal que só depois, durante o processo e muitas vezes somente no final, que você vai ter consciência. Mas a escolha é realmente muito do coração mesmo.

Larissa: Mas não é um mar de rosas ir para campo, por isso tem que ser de coração, porque passamos em campo por várias provações, tem que ter muita paciência, pois há muitos conflitos. Também tem que ser de coração para ter a persistência de seguir, mesmo nos momentos que não são tão fáceis durante a pesquisa de campo. Foi raro, mas eu lembro de uma vez que aconteceu de uma pessoa escolher um campo e depois quando foi fazer os laboratórios, o campo não repercutiu no corpo dela. Começou a vir coisas no laboratório que não tinham nada a ver com o campo, nem analogamente, o estado de corpo não ficou do jeito que deveria, como o estado que geralmente o campo provoca, por isso ela resolveu fazer um outro campo depois. Então também pode acontecer, embora seja bem raro isso.

Mariana: Também tem os campos complementares, às vezes o processo criativo e os laboratórios vão dando fluxo, e o próprio personagem começa a despontar algumas questões. Então, às vezes, a diretora indica fazer um campo complementar para ajudar a abrir outras coisas, mas isso vai depender muito também do olhar da diretora. É muito importante a diretora no processo, até durante a pesquisa de campo estamos sempre em contato com ela, então durante a pesquisa de campo é fundamental.

Larissa: Eu tive uma aluna que foi pesquisar o Congado lá na comunidade dos Arturos, e a personagem que veio no corpo dela estava atrás dos meninos desaparecidos, ela era uma sereia, que tem tudo a ver com o mito do Congado. Então tinha a coisa dos filhos desaparecidos, e eu indiquei para ela fazer uma pesquisa complementar com as Mães da Sé, que são mães lá da Praça da Sé que os filhos estão desaparecidos, elas têm essa ONG para se juntar e ajudar a encontrar os filhos desaparecidos. Duas pesquisas que teoricamente não teriam uma relação uma com a outra, mas que ela fez essa junção e fez essa pesquisa complementar depois.

Agora eu queria saber como se dá a documentação das pesquisas de campo? Durante as pesquisas de campo vocês realizam gravações de vídeo/áudio da manifestação cultural que está sendo estudada? Ou a documentação só se dá através de notas feitas pelos intérpretes a respeito de suas próprias percepções sobre o estudo?

Larissa: O foco nas pesquisas de campo é a relação do intérprete corporal com aquele lugar, então os registros eles vêm só na medida que não for prejudicar essa relação, que não for atrapalhar isso. Até quando tomamos nota, não ficamos em campo com o caderninho tomando nota, porque isso distância. Então fazemos o diário de campo depois, quando vamos para o hotel, ou para onde estivermos e escrevemos o diário. Lá na hora eu só vou anotar se for um número de telefone ou um nome de alguém, uma indicação. Tendo estabelecido essa relação e tendo a permissão das pessoas, fazemos filmagens e fotos, mas dentro desse contexto de não atrapalhar sua própria vivência. Nas minhas eu quase nunca fiz filmagens e fotos, já a Mari consegue, ela filma e tira fotos.

Mariana: Uma coisa que a gente tem usado, uma estratégia, é de às vezes ter uma pessoa de apoio nas pesquisas de campo. Por exemplo, no nosso último projeto e no próprio Relicário, levamos duas pessoas como equipe de apoio, para se deter a esse olhar do registro. Eu mesma fiz o registro da última pesquisa de campo da Larissa, em Belém do Pará, e eu que ficava com as câmeras, e não que eu não estivesse em campo também, e não me relacionei com aquele campo, mas havia uma função que não era ser a pesquisadora de identidade com aquele campo, mas de estar ali registrando, tendo esse cuidado e esse olhar. Então é algo que a gente tem caminhado, principalmente quando tem um projeto grande, a gente tem levado mais de uma pessoa para justamente cuidar desse registro. O registro das gravações, não o diário de campo, é diferente.

Larissa: É muito diferente de alguém como a Mari, que é bailarina-pesquisadora-intérprete fazer esses registros do que, por exemplo, levar um fotógrafo. Porque ela vai ter esse cuidado de não invadir e de não chamar tanta atenção, então procuramos chamar pessoas do grupo que entende o método de pesquisa, para não ficar disparatado.

Paula: Eu queria completar também que realmente a gente só faz registros sempre respeitando e sempre pedindo licença pros pesquisados, porque realmente o mais importante é essa relação pesquisador e pesquisado, essa construção dessa relação de respeito e de afeto. Já aconteceu de eu ir em campos, principalmente quando são rituais religiosos e às vezes em terreiros, em que o pesquisado por já ter sofrido preconceitos e outras situações, pedem para não registrar aquele momento, então sempre respeitamos. Também queria destacar que sempre temos o compromisso de devolver para os pesquisados os materiais registrados, os audiovisuais, fotos e vídeos. É muito importante eles estarem se vendo também. 

Uma das ferramentas para o desenvolvimento do processo criativo se dá através do Dojo, um risco/círculo feito com giz no chão no entorno do corpo, onde o intérprete libera, projeta e elabora os seus impulsos e conteúdos internos. Nós, integrantes do grupo, ficamos intrigados por esse processo específico. É um processo guiado? A diretora realizava algum tipo de provocação para os intérpretes? Ou vocês eram livres para improvisar dentro do tema proposto?

Larissa: Ele é dirigido pela diretora, ela conduz todo o processo. Nessa condução, não é uma provocação é uma condução, pode fazer parte tanto ela estar falando bastante e levando a cada momento para algum lugar, quanto pode fazer parte dessa condução o silêncio. Então a diretora tem que saber os momentos de silenciar e deixar correr mais tempo, e os momentos que ela tem que entrar mais naquilo que está acontecendo e direcionar mais para onde que aquilo está indo. Então essa condução da diretora é algo bem sensível que envolve uma sintonização cinestésica com quem está lá, é uma aproximação bem física, que estamos exercitando fazer agora via computador, mas que é possível também ter essa sintonia e entrar lá junto pela tela, para eu tentar sentir o que o intérprete está sentindo e saber o momento que ele está precisando liberar movimento e descarregar, ou momentos em que tem algum movimento apontando em alguma parte do corpo. A diretora vê que tem alguma coisa ali querendo vir naquele ombro esquerdo, então fala “Repara naquele ombro esquerdo, qual a sensação agora aí? O que está acontecendo?”, por meio dessa provação, a pessoa leva sua atenção e consegue trazer aquilo que estava no ombro para o corpo todo, então tem uma condução. Às vezes o diretor até dá um trabalho para o intérprete fazer sozinho no dia seguinte, explorar certas coisas para depois conversarem, mas sempre está dentro dessa condução, não fica solto. Não chamamos de improvisação, porque é uma pesquisa de situações específicas para o corpo, porque a improvisação ela é uma coisa em si, já é um fim em si, posso ter uma obra cênica que seja de improvisação. E o laboratório ele é um meio, é um trabalho específico com um estado de consciência específico, que é uma percepção bem ampliada do corpo, onde eu vou percorrendo esses circuitos de movimento, sensação, imagem, emoção, e a partir disso, vou vendo o que o meu corpo vai trazer de conteúdos internos, e logo vai sendo construído uma paisagem que começa a se repetir. Se é um corpo que está em uma cabana no canto de um terreiro de terra batida, o eixo desse corpo é nessa cabana, e isso começa a se repetir, então vai se desenvolvendo uma situação.

Mariana: É importante, não é uma improvisação, tem uma técnica. A técnica dos sentidos é uma ferramenta dentro do BPI, então é importante diferenciar isso.

Paula: Tem a técnica dos sentidos e tem a preparação, que é a técnica de dança do BPI, que a estrutura física também é simbólica. Para fazer Dojo tem toda a preparação do intérprete pro Dojo e a partir da condução da direção, desenvolver. Como a Larissa colocou, tem toda uma preparação mesmo.

Larissa: Só que tudo isso que a diretora faz, faz a gente se sentir livre, não nos sentimos presos, é justamente um caminho para te libertar e não te aprisionar. Então a sensação é de estar livre.

Mariana: Tem uma segurança ali na delimitação do círculo, o Dojo, justamente essa delimitação física no espaço, ele tem a ver com alguns conceitos de fronteira corporal, a própria palavra “Dojo” dizendo de um espaço seguro para essa projeção. Então delimitar o espaço é muito importante para esse processo, ele dá um limite do seu conteúdo, limite do seu corpo, esse espaço delimitado às vezes é pequeno e às vezes ele vai se expandindo, tendo essa relação direta com a expansão e limitação do seu próprio conteúdo.

Larissa: Tem a ver também com a kinesfera, que é esse espaço que está além do meu corpo, mas que faz parte do meu corpo. Tem a ver com a imagem corporal também, você vai adquirindo uma ampliação da percepção muito grande, que quando você pisa fora do Dojo você sente que saiu e abre o olho, você sente que saiu sem abrir o olho. O Dojo começa com um risco de giz, porque é uma coisa mais simples de fazer, mais prática, mas ele não é em si uma coisa de giz, ele pode ser feito com barbante, com tecidos, com o que tiver na mão para fazer. Inclusive depois que já vai tendo os materiais, por exemplo a cabana de palha, eu posso fazer o meu contorno de palha. Como é um espaço que você trabalha com uma sensibilidade muito aberta, ele também tem a função de você estar lá com os seus conteúdos, e não captar conteúdos que não são seus. Então ele tem essa delimitação tanto para você projetar os seus conteúdos e enxergá-los, quanto para não vim coisas de fora para dentro e você não acabar misturando coisas que são do seu conteúdo, da sua pesquisa de campo, não misturar coisas que são do arredor, principalmente se é um espaço muito conturbado que você está trabalhando.

Paula: Queria só completar que, além de todo esse trabalho de preparação e desenvolvimento do Dojo, a direção sempre orienta o intérprete. No final, quando o diretor está presente, é feito um feedback, um retorno, uma conversa, sobre como foi o Dojo, o que veio durante ele, puxar consciência do intérprete. Os intérpretes também têm os diários de Dojo, ele escreve para ele começar a entender e a direção acompanhar o que mais está emergindo do corpo, isso é super importante dentro do processo. Então são essas várias ferramentas do método que ajudam na realização do Dojo, para que ocorra esse desenvolvimento criativo.

Durante nossa pesquisa pelos espetáculos produzidos pelo núcleo, vimos que o “Corpo como Relicário” foi um dos maiores projetos, e que as vocês três estavam presentes, Larissa e Mariana atuando, e Paula na co-direção. Nele, foram realizadas pesquisas de campo com Arturos (MG), os folguedos do Boi (MG, MA, MT), os ciganos (SP), as baianas de escolas de samba (SP), as quebradeiras de coco babaçu (TO), as parteiras Pankararu (PE) e as benzedeiras ribeirinhas (AM). Fora os 11 dias em Pirenópolis, Goiás, quando todo o grupo fez pesquisas de campo nas festas do Divino. Como se deu a elaboração de um projeto tão complexo como esse? Como foi realizada a ligação entre tantas comunidades e culturas aparentemente distintas para a elaboração de um único espetáculo?

Larissa: O corpo como relicário foi um projeto muito especial e diferenciado dos outros, porque eram sete intérpretes que todos já tinham muita experiência com o método BPI e todos já chegaram para esse espetáculo tendo uma personagem, tendo uma pesquisa de campo feita anteriormente. Quando fomos fazer a pesquisa de campo, a proposta foi levar as personagens para campo, foi uma pesquisa de campo um pouco diferente, porque além da gente como intérprete ir, tiveram dias que as personagens foram fazer pesquisa de campo. Quando você está com a personagem, você entra nesse grupo social diferente do seu, então você tem um olhar para sociedade, que é um olhar a partir desse grupo e não um olhar a partir do seu olhar, da sua classe social, do seu modo de pensar. É como se você tivesse aquele outro modo de pensar e aquele outro lugar de fala, lugar de fala do personagem e não o seu lugar de fala de nascimento. Então a gente fez essa experiência das personagens se colarem em campo e atuarem em campo, depois fizemos os laboratórios lá em Pirenópolis, nós alugamos uma casa e tinha espaço para todos fazerem seus Dojos, a Graziela dirigiu o Dojo lá na casa mesmo. O que ligou todo mundo foi essa pesquisa de Pirenópolis, porque cada um já tinha a sua pesquisa de antes e o tema do relicário. Então o que era o relicário de cada um? O que era o relicário de cada personagem? O relicário como esse lugar que traz essa fagulha de luz, de contato com esse sagrado, o que dá passagem para esse contato com esse sagrado nessa personagem. A gente foi fazendo uma ligação, cada um tinha o seu espaço individual e o grande espaço no meio onde tinham os encontros. O próprio desenvolvimento do trabalho, com a direção da Graziela, foi tendo os momentos de conexão das diferentes personagens, ela ia elaborando esses momentos que aconteciam, e outros ela foi construindo a partir do que estava vindo em cada um.

Paula: E foi uma imersão, é importante falar isso, foi um projeto que a Graziela já idealizava anos atrás e foi construindo, um projeto que foi uma escola para todos nós, até para quem ajudou na iluminação e toda a parte técnica. Ficávamos em um dos galpões praticamente todos os dias da semana, feriado e finais de semana, quase que o dia inteiro trabalhando com ela. Como a Larissa falou, cada intérprete já tinha os personagens, já tinha um conteúdo de grupo e muita pesquisa, e os laboratórios iniciais começaram a emergir algumas relações entre os personagens, e quando eles foram para campo e tiveram essa vivência lá, de saírem mascarados com os personagens, que a figura do mascarado é uma figura muito presente no Ciclo do Divino, foi muito especial. Depois, quando voltamos novamente para o galpão, foi ali que realmente começou a se definir mais e foi sendo construído o roteiro, a partir do que veio de cada um, de cada relicário e da relação entre os sete relicários. Eu lembro que o pessoal até brincava e falava que tínhamos que ver sete vezes o trabalho, porque era muito rico, tinha o momento que víamos enquanto público, sete relicários, cada um acontecendo alguma coisa, e tinha os encontros dessas personagens no grande meio, tinha ali essa pesquisa que era em comum do Ciclo do Divino, que também é muito diversa, tem os cavaleiros, os mascarados, as benzedeiras e ainda tem muitas outras pesquisas que foram agrupadas. Tinha o momento também que propositalmente a Graziela propôs que o público entrasse no meio, podendo se aproximar pertinho de cada relicário, cada intérprete tinha essa proximidade com o público, e o público escolhia para que relicário ir, podia até ir para mais de um. A Graziela fazia perguntas o tempo inteiro, exatamente isso que a Larissa falou, o que é o Divino para você? O que é o seu relicário? O que tem no seu relicário, enquanto corpo e espaço? E foi a partir, não só dessas perguntas, que foi sendo, aos poucos, construído todo esse trabalho.

Intérpretes mascarados na fábrica Flaskô, Sumaré, agosto de 2017. Foto: João Maria. Arquivo do Grupo de Pesquisa.

Personagem: "Moça da Mata". Intérprete: Mariana Floriano. Foto: Joel H. Silva. Arquivo do Grupo de Pesquisa.

Mariana:  Só acho importante pontuar que as pesquisas de campo anteriores, na Folia de Boi, nas Mulheres Quebradeiras de Coco, no Congado, nas Pankararus, até a própria Larissa com as Mulheres Ribeirinhas, foram pesquisas anteriores há de fato ali o início da construção do projeto e do processo criativo do Relicário. Então é o que a Graziela fala, ela só conseguiu desenvolver esse projeto, porque tinha esse grupo de pessoas dentro do núcleo que já tinha todo esse histórico e também, a Larissa colocou, tinha esse personagem já instaurado. Então foi a partir daí que a gente fez a pesquisa de campo lá no Ciclo do Divino, justamente como a Paula colocou, trazer esse eixo que abre e fecha o relicário, que é o que há de Divino na personagem e qual é essa força do divino que vai abrir e fechar. Essa simbologia do abrir e fechar também acabou aparecendo e sendo conduzida no roteiro pela Graziela, a entrada do público em cada relicário é justamente essa abertura, quando a gente abre e fecha, é a própria ideia do relicário, do objeto relicário, e a Graziela trouxe isso para a própria relação com o público na construção da obra. Então ele de fato é um projeto muito grande, porque se a gente for colocar enquanto processo para cada um dos intérpretes, têm processos de dez anos, de pesquisas de campo extensas e desenvolvimentos extensos, que alicerçaram até outros espetáculos, mas enquanto imersão, como a Paula colocou, foi um projeto de dez meses e que foi possível diante de toda essa imersão do grupo, que são aqueles momentos que a gente colocou lá no começo da entrevista, em que o grupo todo se junta e tem um arpo de encontro, de imersão e de desenvolvimento.

 O espetáculo "O Corpo como Relicário" ocorreu no dia 02 de janeiro de 2017, o Núcleo BPI (Bailarino-Pesquisador-Intérprete) ocupou um barracão gentilmente cedido pela Fábrica Flaskô, atualmente a única fábrica no Brasil ocupada pelos trabalhadores. Isso possibilitou uma imersão de uma maneira muito especial das pessoas envolvidas neste projeto, que puderam inclusive vivenciar as forças de resistência coabitadas com os trabalhadores da fábrica em momentos de dificuldades.

Vocês três trabalham no grupo há muitos anos e, com certeza, já tiveram diversas experiências diferentes. Qual foi o processo mais desafiador e o mais impactante para cada uma de vocês?

Larissa: O que vocês querem dizer com impactante?

O projeto que mais marcou vocês, o que vocês lembram com mais amor, com mais paixão.

Larissa: É difícil falar, porque cada projeto é um projeto. Como ele tá muito ligado com a identidade corporal, também tem uma relação com a fase de vida da pessoa. Eu, por exemplo, fiz 6 espetáculos, comecei em 1996, com 23 anos, agora no último eu tenho 47 anos. Então são 21 anos fazendo espetáculo, e aquela que eu era aos 26 anos, eu não sou mais hoje. E aí cada um foi uma fase da minha vida, tanto pessoal, quanto de autoconhecimento quanto de desenvolvimento enquanto intérprete. E o BPI trabalha sempre no fio do limite de onde dá para a pessoa ir, alcançar, se desenvolver, então eu sinto que em todos eu estava nesse fio. Talvez o desafiador eu possa falar em relação ao que estava acontecendo do lado de fora do processo, as circunstâncias de vida. Nesse sentido, esse da graduação, de 1996, foi o melhor. Estava morando com o meu pai, não tinha que trabalhar, não tinha filho, não tinha família, então aproveitem, não sei se vocês já têm família ou têm que trabalhar. Foi um lugar em que a situação estava mais tranquila para eu desenvolver um processo. Nesse sentido o processo de “Fina flor, divino amor”, que foi um espetáculo de 2010/2011 foi o mais desafiador porque quando estava no processo de criação, em 2010, meu filho ainda não tinha feito 1 ano, então eu estava amamentando e trabalhando. Eu lembro de vezes que eu sentava para trabalhar a voz e dormia. Eu dormia sentada no meio do trabalho de voz. Então foi bem desafiador pelas coisas externas, a quantidade de coisas que eu tinha que fazer e dar conta, foi desafiador nesse sentido. Agora impactante eu acho que todos. Não consigo dizer só um porque cada um teve o seu “impactante” próprio daquele momento. E ainda bem, porque nós estamos em desenvolvimento, então acho que sempre estou me desenvolvendo. Sempre o último parece ser o melhor, porque você se desenvolveu mais, elaborou mais, até a atuação enquanto intérprete.

“FINA FLOR DIVINO AMOR - IYABÁ JEGBA HEY!” - 2011. Com Larissa Turtelli. Direção de Graziela Rodrigues.

Paula: É difícil responder essa pergunta, eu fiquei pensando muito. Eu cheguei ao método com meu espetáculo de formatura, uma montagem cênica, o “Interiores”, que foi, analisando hoje, com certeza muito desafiador, por ser o primeiro. Foi ali que eu realmente decidi, em cena, quando estreamos, quando eu senti aquela potência corporal, dos pés à cabeça, uma energia, eu pensei nossa, é isso que eu quero eu quero trabalhar com esse método eu quero sentir isso mais vezes. Então foi algo realmente muito impactante. E partir dali, mais ainda eu sinto que quero trabalhar com esse método e trabalho até hoje. Então foi muito importante nesse sentido. Já no mestrado eu não cheguei em uma personagem, eu cheguei a modelagens. Estava revendo ontem o vídeo, que a Mari pediu para colocar no nosso Instagram sobre a questão do retorno ao campo. No mestrado, mesmo não tendo chegado a uma personagem, foi uma vivência, a síntese que eu fechei com a orientação da Graziela, e apresentar para os pesquisados foi também muito impactante, mesmo sendo uma modelagem ali. Porque, era essa a pesquisa, a relação pesquisador-pesquisado era o eixo ali, aquele momento. E eu lembro que dançar para os pesquisados foi algo muito especial. Recentemente, antes da pandemia, eu cheguei a incorporar uma outra personagem, muitos anos depois, tinha ficado muito tempo sem dançar, só dirigindo e dando aula e foi também desafiador. Voltar a me desafiar, dizer vamos ver o que esse corpo quer dizer depois de tantos anos, retomar os Dojos depois de tantos anos e foi também um outro desafio. Eu percebi isso, a força desse método que é uma construção, cada um tem um processo único e cada momento é um momento. Eu já tenho 50 anos, então é um outro momento, essas personagens têm muito da gente, mas também no campo social, onde há uma outra pesquisa, uma outra história. Eu me lembro que falei isso para Graziela depois de ter apresentado, que foi uma síntese, não foi um espetáculo. A gente abriu os Dojos na verdade, tinha mais quatro alunas juntas, abrindo cada uma os Dojos e tinha um momento de relação, não era um espetáculo ali. Mas como foi forte sentir de novo aquela sensação, a inteireza desse corpo em cena, de se colocar ali. Então cada um teve um momento especial.

O espetáculo ""Interiores"", com Ana Carolina Melchert, Claudia Soares, Clermont Pithan, Lara Rodrigues,e Paula Salles e direção de Graziela Rodrigues estreou em 1994 e esteve em cartas até 1995. O espetáculo é uma obra cênica criada a partir de pesquisa de campo nas festividades ligadas ao Ciclo do Divino de Pirenópolis em Goiás.

Mariana: Para mim, eu acho que todo processo BPI é desafiador e impactante. Ele impacta, como bem a Larissa colocou e Paula também. Ele impacta no seu autodesenvolvimento, no seu autoconhecimento e na sua auto realização também enquanto artista. Você sempre sai revirado, com uma ascensão, com uma inteireza também, então ele é impactante. Quando a gente termina a elaboração de um espetáculo, há sempre um bem estar, uma sensação de plenitude, de inteireza, então é impactante, a gente fica muito fortalecida. E é desafiador também porque exige muita coragem esse autodesenvolvimento, então se ver é muito difícil. Então dentro da minha vivência com o método eu tenho dois processos, um com a personagem menina e outro com a moça da mata, que acabou resultando em dois espetáculos, então às vezes o mesmo processo pode abrir dois espetáculos ou mais. A menina não chegou a ser um espetáculo com circulação, mas a gente fechou uma síntese corporal, foi apresentado para crianças, dentro de um outro contexto que não de palco e espetáculo cênico, mas teve uma elaboração ali de alguma forma. Os dois são impactantes, os dois foram desafiadores, mas eu acho que tem momentos. Quando me veio a pergunta, pensei que os processos são amplos, mas tem momentos dentro de cada um desses processos, dentro desses meus 13 anos me aprofundando e me desenvolvendo e me formando no método BPI que foram muito desafiadores, mas ligados ao meu processo corporal. E enquanto momentos eu destaco algumas pesquisas de campo, principalmente as pesquisas de campo que eu fiz com algumas etnias indígenas. Para mim é o lugar que gerou muitos desafios. É desafiador e há coisas que eu ainda preciso investigar, então o processo vai exigir uma coragem de desafiar esses encontros com as comunidades indígenas. Tem também um momento dentro do meu processo que foi muito desafiador que foi o trabalho em grupo do “Relicário”, porque você estar ali desenvolvendo um processo de espetáculo só com você é diferente de estar em um espetáculo com mais pessoas, então para mim foi um momento bastante desafiador e impactante porque me fez descobrir outras coisas sobre mim, me fez ver outras faces de mim. Exigiu muita coragem, foi bom me ver, impactou muito na minha vida. Outro momento que eu destaco também são as idas para campo, que foram os campos que eu escolhi, o festejo de boi e a fazenda junto aos boiadeiros. Aquele momento de chegada no campo, tem uma coisa ali que é forte, é arrebatadora, que preenche, nem consigo expressar tão bem, mas é muito impactante dentro do meu processo.

Larissa: Sobre esse lado do desafio do processo que a Mari falou, que exige muita coragem, exige também muitas perdas. Para você escolher fazer isso, é um processo que você tem que mergulhar naquilo todos os dias, abrir um espaço na sua vida para aquilo. E aí, se eu vou abrir um espaço na minha vida para aquilo, eu tenho que tirar da minha vida outras coisas, não dá para eu fazer tudo ao mesmo tempo, então são escolhas, se eu escolho isso eu não tenho aquilo. Por exemplo, para eu poder dançar, eu tive que abrir mão de muitas coisas, são perdas. Tem que ter essa opção e essa consciência de abrir mão de várias coisas para fazer aquilo, colocar aquilo como prioridade na sua vida. Inclusive deixar uma imagem social para o que os outros esperam de você.

Observamos que vocês três, além de artistas, também são professoras. Como vocês levam as experiências e aprendizados com o BPI para dentro da sala de aula?

Larissa: A gente, na Unicamp, está trabalhando com as disciplinas de danças do brasil principalmente. Tem as disciplinas também de ateliê de criação e de TCC de bacharelado. Nessas disciplinas é mais fácil de levar vários aspectos do método, principalmente no TCC bacharelado, mas também na disciplina de danças do brasil, que foi uma em que a Graziela trabalhou muito na implementação, na escrita das ementas, na organização de como seria o desenvolvimento delas. E tem de 1 a 6, a 5 e 6 são eletivas e a 1, 2, 3, 4 são obrigatórias. Então são dois anos que os alunos têm de dança do brasil, duas vezes por semana e depois mais um ano eletivo para quem quiser continuar ou não. Então é um lugar que cabe bastante a gente usar vários elementos do método BPI no desenvolvimento delas, nessa realidade das manifestações populares brasileiras. A gente aborda essas manifestações a partir dessa perspectiva do método BPI, mas não é o método na íntegra, são alguns aspectos para usar dentro dessas disciplinas. Enquanto o TCC de bacharelado, dá para usar ele mais na íntegra, a gente tem alunos que optam por fazer uma pesquisa criativa nesse método e a gente desenvolve com eles. Ateliê de criação depende do grupo, teve ateliê de criação em que eu usei mais o método BPI e já teve ateliê de criação que foi por outra vertente, mas essa formação que o método BPI proporciona para a gente dá para aplicar em diferentes situações. Então essa experiência do autoconhecimento, da pesquisa de campo, traz um outro olhar para os próprios alunos, ter mais abertura para enxergar cada aluno, a realidade de cada um, a experiência como diretora. Mesmo dando algo que não esteja relacionado com o brasil, esse autodesenvolvimento e essa experiência do olhar, da aceitação, da alteridade, da leitura emocional do outro, a gente adquire e usa isso seja lá no que a gente for fazer. Mesmo sendo uma aula de técnica, que eu já dei, não vou usar o método diretamente, mas a minha formação no método me proporciona ser uma professora diferente, ter um outro olhar para os alunos.

Mariana: Eu ia falar um pouco sobre isso. Na minha experiência agora atuando como professora de artes para o ensino médio, não é um curso de dança, não é esse lugar, mas tem uma outra relação com a escola formal, não tem como dissociar. Mesmo eu tendo que trabalhar com conteúdos ligados ao ensino médio, esses aspectos e esses eixos que estão ligados ao método acabam conduzindo os conteúdos que eu vou ministrando para eles e também os temas que eu vou abordando. Por exemplo, para o segundo ano do ensino médio, a gente tem trabalhado com questões ligadas ao autoconhecimento, então eu vou falar para eles o que é emoção, o que é sensação, esse reconhecimento de si, não através da dança, mas através de um outro lugar. Trabalhando com autoconhecimento, a gente aborda conceitos da imagem corporal, que também é um conceito muito utilizado no método, então eu levo isso para a minha disciplina. Já para o terceiro ano, que também dou aula, há um olhar meu para trabalhar com a questão cultural, então tenho trazido à sala de aula questões da cultura popular, da cultura indígena, da invisibilidade social, que são coisas que atravessam o método, quando você estuda você cai nessas questões. Então, de alguma forma, eu não consigo atuar sem propor temas que não estejam aliadas com meu próprio desenvolvimento e a forma como eu penso e me relaciono com a própria arte. E nos trabalhos informais, todas nós damos oficina aqui oficina ali, eu, pelo menos, em todas as oficinas de dança que eu dou, é o método, ou aspectos do método, técnica de dança, técnica dos sentidos, que eu utilizo, então não consigo muito fazer outra coisa.

Paula: Eu também. Estou há 5 anos como docente no curso de dança, e como a Larissa colocou, nas disciplinas de dança do brasil, por mais que não dê para trabalhar inteiro, a gente só vai conseguir aprofundar mesmo com aqueles alunos que escolhem trabalhar com o método no TCC bacharelado, mas a gente trabalha vários aspectos do método nas disciplinas, tanto obrigatórias quanto eletivas. Mas antes de entrar como docente na Unicamp, trabalhei em Minas, em vários cursos livres, desde preparação corporal para atores, cultura popular, de dança. Depois, quando fui trabalhar no curso de licenciatura em Maceió, durante 7 anos, eu trabalhava nas disciplinas de danças tradicionais brasileiras, mas a minha cadeira lá era composição e improvisação. E não tinha como, está tão no corpo da gente, tão integrado, que eu acabava sempre trabalhando algumas ferramentas, alguns aspectos do método, até em disciplinas de metodologia de pesquisa, quando eu ia falar sobre a pesquisa de campo. Então, sempre, de alguma forma, tudo que eu fiz como professora, desde que eu me formei, está o BPI, alguns aspectos do método sempre acabei trabalhando.

Como está sendo o trabalho do grupo desde que a pandemia começou no início de 2020?

Larissa: Eu estava com esse trabalho do Serafins, dirigido pela Graziela, foi um projeto que se chamava “Do tornar visível, encantarias”. A gente foi fazer a pesquisa de campo no começo de 2020, a Mariana também, o músico que fez a trilha sonora foi também. Aí a gente começou a fazer os laboratórios lá na Unicamp e veio a pandemia. A gente também estava, eu e a Paula dirigindo um TCC do bacharelado com 3 alunas que fizeram pesquisa de campo em uma aldeia indígena Guarani em São Paulo, também fazendo a produção artística delas. Aí quando começou a pandemia a gente ficou em standby, esperando voltar, adiantando as partes de reflexão e escrita. Quando a gente viu que não ia voltar, que não ia ter jeito, a gente começou a fazer esses trabalhos remotos. Foi um grande desafio, porque se falassem para a gente antes da pandemia: dá para dirigir, dá pra fazer dojo remotamente? Eu ia falar não, lógico que não, não dá para fazer um dojo pelo computador. E a gente viu que dá, que não é a mesma coisa, mas é possível. Então a gente voltou a trabalhar com essas alunas de TCC pelo Meet, pelo Zoom, dirigir desse jeito e o espetáculo delas foi apresentado online agora em janeiro deste ano. E aí esse projeto “Do tornar visível, encantarias”, que ia ser espetáculo, vídeo-dança, o Serafins.  A gente fez também uma mesa do nosso grupo de pesquisa no seminário da pós-graduação da Unicamp, das artes da cena. Fizemos uma mesa com 6 pessoas do grupo onde a gente abordou o ensino do método BPI, mais sobre a questão pedagógica e está gravada essa mesa, se vocês quiserem assistir. Eu tive também uma orientanda do mestrado que defendeu ano passado, em maio e as aulas da Unicamp, minhas e da Paula, como eram as da Graziela, antes dela entrar de licença, a gente sempre abre para outros membros do grupo participarem, então tem sempre integrantes do grupo de pesquisa fazendo aula junto, mesmo da graduação, ou quem já terminou o doutorado vem fazer aula da graduação para estar se desenvolvendo, porque são aulas que todo mundo pode aproveitar, em diferentes níveis, cada um vai aproveitar no nível que consegue a partir da situação de aprendizado que está, alguns vão aprofundar muito, outros vão aprofundar menos. Eu mesma fiz um monte de disciplinas da graduação, nas aulas da Graziela sempre a gente se desenvolve.

Mariana: Uma coisa de produção que a pandemia nos proporcionou está sendo uma mobilização das nossas redes sociais, então isso também tem gerado alguns lugares de trabalho e de organização do acervo do grupo. Para subir essas coisas para a rede de alguma forma você tem que coletar imagens, pegar os vídeos, então como produtora, está sendo um lugar de rever matérias antigas, de rever histórias e de aumentar um pouco o nosso acervo disponível no Youtube.

Paula: Reforçando isso que as duas colocaram, sem dúvida a gente gosta muito de toda a nossa formação e trabalhos de antes da pandemia, nos quais a gente dirigiu ou dançou, tudo era presencial. É um trabalho que trabalha muito essa questão sinestésica, a proximidade, a própria direção também. Mas foi um desafio, eu não esqueço o primeiro dojo, a gente estava morrendo de preocupação e quando deu certo, e quando o espetáculo que eu dirigi com a Larissa, e que a Luciana fez uma assessoria artística e a Mari que também é do nosso grupo foi assistente de direção, quando a gente estreou, a gente não acreditou. A gente perdeu a conta de quantos laboratórios a gente fez online com essas alunas e a nossa grande preocupação, por mais que a Graziela tivesse visto algum ensaio, a gente pensou: será que vai funcionar? Será que o público vai se emocionar, vai entender, vai se sensibilizar? Lógico que de uma forma diferente, mas com o trabalho, como ele foi feito e apresentado todo online. E a gente viu que funcionou. Então a gente ficou feliz de ver e a gente, mais uma vez, reforçou a força desse trabalho, desse método, que mesmo online consegue sensibilizar as pessoas. Várias pessoas que assistiram nos deram esse retorno. Então a gente ficou muito feliz mesmo de ver que a gente conseguiu, que valeu o esforço. E é um desafio. Tem esse lado também positivo que a Mari colocou do site, do Instagram de a gente estar organizando os materiais e aprofundando, revendo. Eu, Larissa e Graziela estamos escrevendo um ebook que vai sair no meio do ano, relacionado a uma das disciplinas, “Dança do Brasil 4”. E vamos ver como vai ser a reação. Hoje eu tenho os artigos, muita coisa publicada online, mas também está sendo um desafio escrever e atingir quem vai ler de uma outra maneira. A gente está aprendendo com essas ferramentas tecnológicas, eu mesma tenho muita dificuldade. É um desafio também para nós lidar com essas plataformas, com essas outras linguagens.

Por último, tendo trabalhado durante tantos anos com o grupo, vocês vivenciaram muitos processos diferentes, trabalhando com diferentes pessoas, povos e culturas. O processo do BPI envolve muito a questão do autoconhecimento e do contato com o outro, como vocês acham que esses anos de trabalho no grupo moldaram vocês, tanto como profissionais, quanto como seres humanos?

Larissa: Nossa, é muita coisa, né? Eu tive mais anos de vida fazendo o método BPI do que antes de fazer. Então, como eu comecei a fazer com 19 anos e agora estou com 47, acho que sou outra pessoa completamente do que quando eu tinha 19 anos. São muitas mudanças mesmo, então vou tentar ressaltar as que me vêm em mente, mais significativas. Eu acho que tem um olhar mais sensível para as outras pessoas, tanto as pessoas do dia a dia, quanto as pessoas dessas culturas que não são tão notadas, ou que estão até no dia a dia, mas não são tão notadas. A mulher que faz a limpeza, a pessoa que está catando lixo aqui, papel reciclável na frente de casa. É um olhar sensível para essas pessoas porque você faz as pesquisas e você se abre para essas relações para sentir, para enxergar, para perceber, e aí você nunca mais olha para ninguém da mesma maneira. Acaba que você tem um olhar mais despido, mais vulnerável, mais aberto. Então tem esse olhar para o que acontece lá fora e que tem a ver com o olhar para a gente mesmo. Quando você se abre para se ver, você também consegue ver melhor o outro. Acho que aprendi a me cuidar mais, porque antes eu não sabia o que era me cuidar, eu era muito autodestrutiva. Ainda estou aprendendo a me cuidar, mas é uma coisa que Graziela sempre me ensina, até hoje, é um aprendizado também. Mas acho que tem uma coisa que a partir do momento que você vai evoluindo nessa história de autoconhecimento, o que me proporcionou mais conhecimento na minha vida foi o método BPI, você passa a ter mais discernimento, então você consegue enxergar muito melhor o que é seu, o que é do outro o que é da questão do grupo, você não fica mais com isso tudo misturado. Você tem uma clareza na sua visão das situações, e isso ajuda em qualquer ação na sua vida. Essa clareza, esse discernimento na percepção das situações. Então eu vou em uma reunião, eu consigo ver os jogos, o que está acontecendo, quem está fazendo cumplicidade com quem, porque nem sempre essas coisas são ditas na cara, tem muitas coisas que vão ficando de pano de fundo. É uma evolução na sua sensibilidade para perceber essas coisas e ter consciência dessas coisas que estão acontecendo. Tem a sensibilidade artística também, o desenvolvimento enquanto intérprete. Lá no começo, para eu me mover nessa história de sensação, de movimento, de chão, de imagens, eu não tinha tanta consciência, não tinha tanto fluxo nesse percurso. Às vezes tinha, às vezes não tinha. Hoje em dia eu tenho muito mais fluxo, muito mais desenvolvimento nos laboratórios. O que antes demorava muito para vir, hoje vem com muito mais destreza, muito mais ativada. Também já investiguei muitos lugares da minha história pessoal, das minhas memórias que são dolorosos, que são sofridos. Então nesse caminho andado você não precisa voltar. Ou às vezes volta e já vai muito mais rápido porque você já conhece, você tem mais dinamicidade ao passar por esses lugares. Enquanto alguém que está começando entra em contato uma vez com alguma situação da vida e é como se acabasse o mundo, é uma coisa que impacta muito, que mexe muito. Hoje em dia você já conhece. Mexe, mas já não para sua vida por causa disso, não fica tão assustado assim com as coisas, o processo criativo dá outro desenvolvimento. Esse último processo que foi o vídeo-dança, eu percebi como eu estava tendo mais destreza para pegar a personagem, para entrar nos conteúdos, porque na vídeo-dança você não fica na personagem o tempo inteiro, entrando no roteiro, os conteúdos. A pessoa que está filmando fala para, volta, faz de novo, tem duas pessoas pertinho de você com câmera, com gravador, então você tem que conseguir trazer aquele conteúdo, a personagem, e as sensações de uma maneira mais rápida. Então se você pega um aluno que está começando, você tem que ficar 20 minutos para trazer a personagem, conduzir, levar a abrir a sensação. Ali, eu tinha que pegar em 3 segundos. Aí eu percebi que estava conseguindo pegar rápido, entrar com força no conteúdo sem tanto tempo para desenvolver. Então são várias coisas pessoais e artísticas que é essa característica do método, sem ter como separar uma coisa da outra. Eu estava falando dessas alunas que se formaram, quando a gente fecha o processo, a gente sempre faz uma reunião para avaliar e eu estava falando com elas que o BPI ele te prepara para fazer várias coisas na vida. Você pode virar uma engenheira que ele vai te dar uma preparação, que vai te ajudar a ser uma engenheira por conta dessa questão do autoconhecimento, da sensibilidade, do discernimento, da aceitação, então é uma formação humana mesmo.

Paula: Eu vejo que é realmente uma formação muito integrada, artística e humana, não tem como separar. Ao analisar tudo que eu vivenciei esses anos todos, eu percebo como o método me ajudou e me ajuda em um processo para a vida mesmo de integrar um pouco mais, me sinto mais integrada hoje. E também é uma busca constante, acho que isso é um grande desafio. A cada processo, a cada pesquisa de campo, a cada personagem. Tem uma imagem que a Graziela usa muito com a gente que é a analogia do mito da Imana, que é a deusa que vai até os infernos e ela vai se despindo cada vez mais e depois ela renasce. Eu sinto muito isso nos processos que a gente vivencia no método. Você vai entrando em contato com você, vai elaborando mais sempre. É um processo que vai, vai, vai, para estar renascendo, puxando cada vez mais a força de vida mesmo da gente, essa força humana está muito ligada ao artístico. E é um processo constante, diário. A Larissa falou do discernimento né, exatamente, a consciência. A gente trabalha muito você ter a consciência das suas emoções, sensações, ao que está ligado ao movimento, à imagem, então é um processo profundo de autoconhecimento que ajuda esse corpo a se liberar para poder atuar. É muito conectado. E a ação desse olhar é algo que a gente vivencia durante todo o processo e que as pesquisas de campo ajudam muito. Quando você vai para campo você abre todo o olhar, então você vai conhecer esse outro campo social. É um movimento de fora para dentro, o que tem a ver comigo e o que não tem. O contato profundo com o outro que acontece em campo, é um contato que você entra em contato com o outro, mas você se vê também, você se olha e se revê. É um processo contínuo, é uma escolha para toda a vida.

Mariana: Eu acho que, por ser um método, esse desenvolvimento humano e todas essas qualidades humanas e artísticas que a Larissa e a Paula colocaram vão despontar e qualquer pesquisador que você falar sobre o método BPI vai falar essas qualidades. Eu não tenho muito a acrescentar, porque é isso, o próprio método ele constrói e gera isso em comum nas pessoas que escolhem se formar enquanto artistas dentro dele. Creio que se eu começar a falar da minha experiência aqui eu vou ficar muito redundante. Como consideração final eu gostaria de dizer apenas aqui somos três pessoas falando, mas tem muita história, tem um grupo inteiro, tem muita força por trás disso, principalmente pela figura da Graziela, pela pessoa que ela é. É importante ressaltar a figura dela dentro desse grupo, a pessoa principal, a criadora, que desenvolveu isso, que teve as primeiras experiências e que se colocou ali, enquanto local de desbravar isso no seu corpo lá na década de 80, então considerar a Graziela nessa conversa é muito importante.

Os alunos, Giulia e Nathan, agradecem imensamente a participação de Larissa, Mariana e Paula nessa entrevista. 

Para mais informações sobre o Núcleo BPI, acesse: https://www.bailarino-pesquisador-interprete.com/ ou pelo Instagram: @nucleobpi


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