Entrevista com o Núcleo Bailarino-Pesquisador-Interprete (BPI)
Entrevista
realizada no dia 1° de abril de 2021, através da plataforma Google Meet com as
integrantes Larissa Turtelli, Paula Caruso e Mariana Floriano, sobre os
processos criativos do Núcleo BPI.
Sobre
o BPI:
O método
Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI) foi criado por Graziela Rodrigues após
anos de formação e de experiências nacionais e internacionais em Artes Cênicas.
A elaboração do Método começou na década de oitenta quando Rodrigues, em
resposta aos seus questionamentos pessoais como intérprete, buscava estabelecer
meios próprios para o desenvolvimento de suas criações artísticas. De acordo
com relatos (aulas, palestras, cursos e reuniões do Grupo de Pesquisa) e
publicações (vide lista de publicações do método BPI) de Rodrigues, não houve a
intenção premeditada de formular uma metodologia particular. No entanto, ao fim
de alguns anos de imersão e investigação, a frequência e a pertinência de
determinadas ferramentas utilizadas em seus processos criativos apontavam um
caminho que poderia ser percorrido não só por ela, mas também por outros
intérpretes. O ano de 1980 marca o momento em que esta metodologia começa a ser
estruturada e, em 1987, se dá a sistematização do método BPI, momento em que
Rodrigues começa a dirigir outros intérpretes.
Sobre as integrantes:
LARISSA TURTELLI
É artista da dança,
docente e pesquisadora do Instituto de Artes da Unicamp. Iniciou sua
especialização no método Bailarino-Pesquisador-Intérprete (BPI) em 1992, tendo
desde então realizado diversas produções artísticas, workshops e pesquisas de
campo de realidades brasileiras a partir desse método.
C.V. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4795583U9
MARIANA FLORIANO
Bailarina-Pesquisadora-Intérprete,
professora de Dança e produtora Cultural. Doutoranda em Artes da Cena pela
UNICAMP. Mestra em Artes da Cena (2014), UNICAMP. Graduada em Dança (2009) pela
UNICAMP.
C.V. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4260135P5
PAULA CARUSO
É
bailarina-pesquisadora-intérprete, pesquisadora e professora Doutora do curso
de Dança da UNICAMP. Possui licenciatura plena em História pela FEPI,
Itajubá-MG; e Bacharelado em Dança, Mestrado em Artes, Doutorado em Artes da
Cena, todos esses três cursos pelo Instituto de Artes da UNICAMP, Campinas- SP
C. V. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4148536P2
Como
vocês definiriam o processo criativo do BPI em três palavras?
Larissa:
Eu pensei nas palavras “corpo”, “potência” e “coletividade”.
Paula:
Eu pensei em “intenso”, “transformador” e “originalidade”.
Mariana:
Eu segui os eixos do método e pensei em “inventariar”, “coabitar” e “nuclear”
no sentido de “estruturar”.
É
muito interessante observar como cada uma de vocês pensou em palavras tão
diferentes, mas que de alguma forma estão todas conectadas. A segunda pergunta
que gostaríamos de fazer é se o núcleo se considera um grupo de dança,
dança-teatro, teatro físico ou vocês não atribuem um rótulo ao seu trabalho?
Larissa:
Eu tive essa discussão com a Graziela em um dos nossos trabalhos anteriores,
sobre como nós iriamos nomear esse espetáculo para divulgação na época. As
palavras carregam uma história, então se você traz uma palavra, ela já carrega
consigo diversas associações e referências. Quando falamos dança, isso desperta
um imaginário muito da dança clássica, da dança de salão, uma dança que não tem
nada a ver com a dança que fazemos. Já quando nós falamos “dança-teatro” tem
essa referência da dança-teatro de Pina Bausch, que também não tem nada a ver
com o trabalho que nós fazemos. Quando falamos de “teatro-físico” remete à mímica
francesa e toda essa corrente da época, que também não é o que fazemos. Então
na época que estávamos discutindo esse assunto, nós optamos por usar o termo
“dança-teatro”, por que pensamos que esse termo pelo menos não remetia aquela
dança que é só movimento, onde não há personagem, onde não há um conteúdo de
uma maior comunicação. Por esse motivo achamos que “dança-teatro” era o termo
que ficava mais próximo do que queríamos, mas muitas vezes nós usamos somente o
termo “dança” também.
Mariana:
É
o que eu ia falar, nós já tivemos produções em que nos aliamos tanto aos
editais de dança, como aos de teatro, porque vemos que ambos abarcam e
aglutinam essas duas áreas. Nós estamos falando de intérprete e a outras
questões que estão ligadas à essa criação de personagem, mas que tem um outro
viés, onde essas duas coisas se juntam. Dentro dos trabalhos a gente tenta
conceituar bem o que a gente está querendo chamar de intérprete, de personagem,
de dança, de potencialidade e de atuação, que como a Larissa falou, não é nada
de uma dessas coisas, mas que de alguma forma aglutina essas grandes áreas.
Paula:
Eu
sinto isso também, eu acho que o trabalho aglutina essas duas grandes áreas,
mas é delicado a gente nomear, como a Larissa falou. Tivemos casos onde as
produções foram chamadas de “dança-teatro”, mas é uma dança que é uma outra
dança, bem diferente do que os outros trabalhos de dança fazem.
Antes
da pandemia, qual era a frequência de encontro do grupo? Visto que todos os
integrantes são mestres e doutores, como se dava o processo de encontro para
prática e desenvolvimento dos projetos do grupo? Vocês tinham dias e horários
fixos de encontro?
Larissa:
A
estrutura de trabalho do nosso grupo varia muito. Como o grupo existe há vários
anos, já houveram épocas em que fizemos encontros fixos, de 15 em 15 dias ou
uma vez ao mês, para apresentação das pesquisas ou para discutir algum texto. Nos
últimos tempos, antes da pandemia, nós não estávamos com encontros fixos, nos
encontrávamos apenas em situações específicas. Nós somos um grupo bem unido,
então quando algum integrante ia fazer alguma produção todo mundo ia junto para
ajudar e colaborar, nem sempre está todo mundo dançando junto, as vezes vai ter
uma dança do mestrado de alguém, aí todo mundo que pode vai e auxilia nos ensaios
e na produção. Nós sempre estamos nos juntando nos trabalhos individuais de
cada um do grupo, porque o BPI ressalta muitas individualidades, então não é
todo mundo igual, cada um tem seus projetos e a vai se juntando para auxiliar
uns aos outros. Depois que tivemos o espetáculo “O Corpo como Relicário” em
2017, nós continuamos nesse esquema dos projetos mais específicos, nos juntando
quando tinham havia a necessidade e durante os eventos.
Paula:
Para completar o que a Larissa falou, o Relicário foi um caso bem específico
que foi uma imersão de praticamente o grupo inteiro, onde ficamos mais de 7
meses na criação e nos víamos todos os dias, foi uma vivência muito intensa. De
2017 para cá, os encontros tem sido mais pontuais, seja para uma defesa de mestrado,
doutorado, projetos individuais, espetáculos, ou como aconteceu ano passado
quando houve o seminário “Artes da Cena” na pós-graduação, onde organizamos um
compartilhamento temático, cada um falou um pouco da sua pesquisa e a Graziela
nos deu um retorno. Nós temos essa ligação muito forte, então sempre tem essas
trocas.
Larissa:
Teve também o encontro do Grupo BPI de Santa Maria, pois também há um grupo na
Universidade Federal de Santa Maria, que é o Flávio que está organizando. O
Flávio foi orientando da Graziela e a gente fez um encontro entre grupos de
pesquisa nesse período.
Mariana:
Eu só queria ressaltar isso, o fato de que é um grupo de pesquisa e que a gente
desenvolve os projetos artísticos, as produções acadêmicas estão aí e nós
mesmos sempre frequentamos as aulas da Paula, da Larissa e da Graziela, antes
da licença dela, lá na UNICAMP, então esse contato como desenvolvimento, como
pesquisa e como pesquisador individual, a gente sempre está próximo. E há os
momentos de aglutinação para produção dos projetos artísticos e para eventos,
assim como a Larissa e a Paula falaram. Esses momentos são de bastante
intensidade, eu a Larissa agora estamos desenvolvendo um projeto, onde a gente
se fala todos os dias, trabalhamos todos os dias juntas, sempre em contato com
a Graziela. Quando a situação voltar ao normal, nós vamos voltar nessa relação
de eu ir e fazer a aula dela, por exemplo. Há as intensidades e há os momentos
em que a gente se dissipa.
Percebemos
no BPI uma busca por movimentações e teatralidades fundamentalmente
brasileiras. Na opinião de vocês, há de fato no BPI essa procura por
identidades plurais e inconscientes coletivos intrinsecamente brasileiros e
interpessoais, através do movimento?
Larissa:
Essa é uma questão que sempre nos vem. Não é uma questão da brasilidade, de
nacionalismo, mas sim uma questão da identidade corporal e uma questão social
do contato com essa realidade que está ao nosso redor. Já tivemos alunas,
intérpretes de outros países e há uma que foi bem significativa, ela é do
Equador e fez a pesquisa de campo dela aqui no Brasil. Nós começamos os
laboratórios, mas nos laboratórios começaram a vir coisas da terra dela, do
Equador, porque é essa identidade corporal e esse imaginário, esse inconsciente
coletivo lá do lugar dela. Depois ela foi fazer uma segunda pesquisa de campo
lá no Equador, dessa maneira já teve também uma aluna polonesa, onde também
veio esse imaginário lá da Polônia. Um intérprete cubano, que também trouxe
manifestações populares lá de Cuba. Então, tem a ver com essa identidade
corporal que está na nossa memória e que vai além da nossa memória individual,
tudo aquilo que o nosso corpo carrega. É mais nesse sentido dessa identidade
corporal e muito forte uma questão social, nós fazemos questão de trazer esse
lado social, de estar trazendo alguma questão sobre o que está ocorrendo no
mundo para a cena.
Sobre
os processos dramatúrgicos/coreográficos do grupo: de que forma se dá a
criação/montagem de espetáculo a partir do personagem enquanto organização
corpórea? Como o resultado da pesquisa se materializa e se organiza em forma de
obra?
Larissa:
Uma questão muito importante no processo do Método BPI é a presença do diretor,
ele precisa ter uma diretora ou diretor, essa pessoa é fundamental para que se
desenvolva o processo. A Graziela faz uma analogia dessa diretora como uma
parteira, não é ela que vai dizer que bebê que vai nascer, mas ela está lá para
ajudar o bebê a nascer. Isso quer dizer que o diretor não vai colocar os seus
desejos, vontades e projeções em cima daquilo que o intérprete vai fazer, mas é
ela que vai ajudar a puxar esse bebê, fazer ele nascer na hora que tem que
nascer, porque se não há o perigo do bebê morrer lá dentro e não nascer, por
isso precisamos dessa diretora para ir fazendo todo esse procedimento
acontecer. Então, a personagem vai surgir a partir de um encontro do intérprete
com a pesquisa de campo, essa pesquisa é fundamental no método, pois é quando a
pessoa vai ter uma experiência de alteridade, está focada muito mais nas
relações pessoais do que querer aprender aquela dança, ou aprender como se
corta cana, ou aprender como se carreia o boi. É uma relação pessoal, sobre o
que se estabelece ali e o quanto tem ali de identificação, de espelhamento e de
conflito, essa relação da pesquisa vai acordar um monte de sentimentos dentro
do intérprete e vai permitir que ele se abra para uma realidade que é maior do
que a história pessoal dele, isso propicia que ele não fique só na sua história
pessoal e trazendo para a cena só coisas pessoais. A partir disso, o interprete
que se abriu para perceber outra realidade, vai começar a nuclear uma
personagem, onde nós fazemos os laboratórios dirigidos, neles nós trabalhos os
circuitos entre movimento, sensação, emoção e imagens, sobre como o movimento
que eu faço é percebido e interpretado por mim. Dentro desses circuitos, desses
fluxos de movimento, a diretora vai observando e vai colocando perguntas para
ajudar o intérprete a perceber o que ele está fazendo e para pescar aquilo que
ela vê que está mais integrado, aquilo que veio com mais força. A partir disso
o corpo vai formando outros corpos, como uma mulher mais velha que tem as mãos
sujas de terra, ou um corpo meio bicho, até chegar uma hora que todos esses
corpos se juntam e formam uma nova coisa, que é a personagem. É como se não
fosse você, como se você se mexesse e nem percebesse, estamos conscientes, mas
somos um outro ser. Quando a personagem vem, nós começamos a pesquisar o que
que ela veio para trazer, o que ela veio dizer e o foco passa a ser a partir da
personagem, a história de vida dela, o que ela fez e o que ela é. A partir
disso que a direção vai construir um roteiro para esse trabalho, a partir
daquilo que foi mais significativo, nós abrimos diversas coisas durante o
processo, mas o que vai ficar no projeto final é aquele resíduo, onde você tira
tudo o que não é necessário até sobrar só aquilo que não sai mais, aquilo que
fica, esse resíduo é o que vai ser usado para construir a dramaturgia do
projeto. As personagens carregam consigo todo um contexto social, se for uma
mulher andarilha do sertão ela está trazendo todas essas mulheres andarilhas do
sertão junto com ela, é sobre essa potência do corpo coletivo.
Paula:
É a partir do personagem que se delineia o roteiro, os objetos cênicos,
cenários e falas. Quero citar o exemplo de “Diante dos Olhos”, um espetáculo
que a Graziela dirigiu, onde a Larissa dançou junto de outra intérprete, a
pesquisa se deu em terreiros de umbanda em Campinas. A proposta do BPI não é
reproduzir a pesquisa, não é a mimese, a personagem é justamente a mistura do
intérprete com o campo social. Nesse
caso elas pesquisaram terreiros de umbanda e haviam elementos de movimento e de
sentidos claramente ligados à pesquisa no espetáculo final. A estética pode
estar ou não mais próxima daquilo que foi pesquisado, por exemplo o
“Interiores” que eu dancei, onde pesquisamos o círculo do divino em
Pirenópolis, ali naquele espetáculo, haviam elementos bem mais próximos da
pesquisa de campo, mas em outros como “Diante dos Olhos” isso não estava tão
perceptível, porque a nossa proposta é justamente ampliar, o trabalho não vai
falar diretamente o inventário da personagem e nem só do campo social, é sobre
essa mistura e a forma como isso vai se dar depende muito de cada intérprete.
Mariana:
É importante reforçar que tanto a construção do roteiro, como a construção coreográfica
tem total ligação com a personagem e com o processo. Há um rebuscamento, um
trabalho de iluminação e figurino, mas tudo está ligado aos laboratórios e ao
eixo que conduz essa personagem. Não há floreios, é como a Larissa falou, é
tudo muito residual, é aquilo que é necessário ser dito, somente aquilo que tem
sentido diante de todo aquele processo criativo desenvolvido.
Larissa:
O resultado também não é tal qual veio no laboratório para a cena. Depois que é
levantado o material há todo um trabalho técnico, mas ele é um trabalho
integrado, então quando eu elaboro tecnicamente eu vou fazer vários exercícios
onde a direção vai me dar as orientações necessárias para tirar melhor proveito
daquela imagem, daquela ideia proposta durante os laboratórios. Esse trabalho
técnico potencializa a emoção e os sentidos. O de dentro para fora e o de fora
para dentro vão se ajudando. Há muitos trabalhos técnicos, físicos mesmo para
coreografar e refinar as movimentações com o objetivo de ampliar a comunicação
com o espectador. Nós pensamos muito nessa comunicação, sobre como deixar
claros os conteúdos a serem captados pelo espectador.
Na
etapa de pesquisa de campo, percebemos que há uma escolha do intérprete sobre o
grupo/lugar social em que ele irá desenvolver essa pesquisa. Também nota-se que
há um recorte social expressivo e uma interseccionalidade muito grande dentre
os grupos sociais já escolhidos para esse trabalho de coleta de informação.
Desse modo, como se dá essa identificação e escolha de determinado tema/grupo
social que vocês irão trabalhar durante aquele processo?
Larissa:
A escolha é sempre do intérprete. A Graziela fala bastante que o intérprete tem
que estar apaixonado por aquele lugar, você escolhe pela sua paixão, tem que
ser um lugar que te dá tesão, que você quer ir, quer estar lá, quer estar com
aquelas pessoas. Então não é uma escolha racional, é uma escolha do coração,
uma escolha física, é uma atração. Pois quando a gente sente atração, quando
sentimos amor e paixão, nosso corpo se abre e eu tenho que ir para esse campo
com o corpo aberto, porque eu vou receber esse campo nos meus poros, no meu
corpo e na minha mente. Então essa escolha é uma escolha bem do coração. Tem
essa questão de escolher um local que tenha uma força de vida, eu vou escolher
o que eu quero trazer para cena e para quem for assistir, e eu quero trazer uma
força de vida. Eu posso ir lá para uma tragédia, para um buraco sem fundo, mas
eu vou subir de volta e vou trazer de alguma maneira uma esperança, uma força
de vida, nutrir esse lugar da resistência. Então se um intérprete chegar para
mim e falar que quer pesquisar “tal coisa” e eu vejo que é uma coisa super
deprê e que não gera nada, eu vou falar que não aconselho, porque ele vai estar
alimentando dentro dele esse lado de buraco sem fundo. Então você vai pesquisar
esse lado que traz essa força de vida, força de resistência, essas culturas que
têm uma resistência frente a cultura dominante, uma resistência de manter uma
identidade corporal, identidade cultural frente essa cultura dominante que quer
apagar tudo, que quer massificar tudo. Então tem também esse critério, o
intérprete chega com uma ideia e a gente avalia nesse sentido, de não ser algo
que tem essa pulsão de morte, mas algo que leve para um lado de vida e de estar
nessa força de resistência que fortalece a identidade, essa identidade
cultural.
Mariana:
Acho que dentro desses critérios é relevante também aqueles campos que o meu
imaginário e expressividade é aberto, em que você está lá aberto indo para esse
campo que você se identifique e chegando lá você encontra expressividade,
resistência, vida e um imaginário. Então você está também entrando em contato
com essa capacidade criativa que vai ampliar e potencializar o seu corpo no
processo criativo.
Paula:
Isso que a Larissa falou e Mariana completou, em dizer como é importante mesmo
essa paixão e esse amor pelo campo, é fundamental. Sem isso o campo não
acontece, não se desenvolve, e você não chega ao que a Graziela fala o
“coabitar com a fonte”, esse encontro amoroso que é formado entre o pesquisador
e o pesquisado. E é muito interessante, ela também escreve sobre isso, que
quando você escolhe o campo muitas vezes você não tem consciência do porquê
escolheu aquele campo, porque tem que ser aquele terreiro, aquele grupo que
colhe uva, seja o que for. Às vezes durante o processo é que você vai
percebendo que realmente você tinha uma identidade cultural corporal e que algo
daquele campo estava próximo do seu inventário, as vezes nem está próximo da
sua história pessoal, mas tinha uma identidade ali corporal que só depois,
durante o processo e muitas vezes somente no final, que você vai ter consciência.
Mas a escolha é realmente muito do coração mesmo.
Larissa:
Mas não é um mar de rosas ir para campo, por isso tem que ser de coração,
porque passamos em campo por várias provações, tem que ter muita paciência,
pois há muitos conflitos. Também tem que ser de coração para ter a persistência
de seguir, mesmo nos momentos que não são tão fáceis durante a pesquisa de
campo. Foi raro, mas eu lembro de uma vez que aconteceu de uma pessoa escolher
um campo e depois quando foi fazer os laboratórios, o campo não repercutiu no
corpo dela. Começou a vir coisas no laboratório que não tinham nada a ver com o
campo, nem analogamente, o estado de corpo não ficou do jeito que deveria, como
o estado que geralmente o campo provoca, por isso ela resolveu fazer um outro
campo depois. Então também pode acontecer, embora seja bem raro isso.
Mariana:
Também tem os campos complementares, às vezes o processo criativo e os
laboratórios vão dando fluxo, e o próprio personagem começa a despontar algumas
questões. Então, às vezes, a diretora indica fazer um campo complementar para
ajudar a abrir outras coisas, mas isso vai depender muito também do olhar da
diretora. É muito importante a diretora no processo, até durante a pesquisa de
campo estamos sempre em contato com ela, então durante a pesquisa de campo é
fundamental.
Larissa:
Eu tive uma aluna que foi pesquisar o Congado lá na comunidade dos Arturos, e a
personagem que veio no corpo dela estava atrás dos meninos desaparecidos, ela
era uma sereia, que tem tudo a ver com o mito do Congado. Então tinha a coisa
dos filhos desaparecidos, e eu indiquei para ela fazer uma pesquisa
complementar com as Mães da Sé, que são mães lá da Praça da Sé que os filhos
estão desaparecidos, elas têm essa ONG para se juntar e ajudar a encontrar os filhos
desaparecidos. Duas pesquisas que teoricamente não teriam uma relação uma com a
outra, mas que ela fez essa junção e fez essa pesquisa complementar depois.
Agora
eu queria saber como se dá a documentação das pesquisas de campo? Durante as
pesquisas de campo vocês realizam gravações de vídeo/áudio da manifestação
cultural que está sendo estudada? Ou a documentação só se dá através de notas
feitas pelos intérpretes a respeito de suas próprias percepções sobre o estudo?
Larissa:
O foco nas pesquisas de campo é a relação do intérprete corporal com aquele
lugar, então os registros eles vêm só na medida que não for prejudicar essa
relação, que não for atrapalhar isso. Até quando tomamos nota, não ficamos em
campo com o caderninho tomando nota, porque isso distância. Então fazemos o
diário de campo depois, quando vamos para o hotel, ou para onde estivermos e
escrevemos o diário. Lá na hora eu só vou anotar se for um número de telefone
ou um nome de alguém, uma indicação. Tendo estabelecido essa relação e tendo a
permissão das pessoas, fazemos filmagens e fotos, mas dentro desse contexto de
não atrapalhar sua própria vivência. Nas minhas eu quase nunca fiz filmagens e
fotos, já a Mari consegue, ela filma e tira fotos.
Mariana:
Uma coisa que a gente tem usado, uma estratégia, é de às vezes ter uma pessoa
de apoio nas pesquisas de campo. Por exemplo, no nosso último projeto e no
próprio Relicário, levamos duas pessoas como equipe de apoio, para se deter a
esse olhar do registro. Eu mesma fiz o registro da última pesquisa de campo da
Larissa, em Belém do Pará, e eu que ficava com as câmeras, e não que eu não
estivesse em campo também, e não me relacionei com aquele campo, mas havia uma
função que não era ser a pesquisadora de identidade com aquele campo, mas de
estar ali registrando, tendo esse cuidado e esse olhar. Então é algo que a
gente tem caminhado, principalmente quando tem um projeto grande, a gente tem
levado mais de uma pessoa para justamente cuidar desse registro. O registro das
gravações, não o diário de campo, é diferente.
Larissa:
É muito diferente de alguém como a Mari, que é
bailarina-pesquisadora-intérprete fazer esses registros do que, por exemplo,
levar um fotógrafo. Porque ela vai ter esse cuidado de não invadir e de não
chamar tanta atenção, então procuramos chamar pessoas do grupo que entende o
método de pesquisa, para não ficar disparatado.
Paula:
Eu queria completar também que realmente a gente só faz registros sempre
respeitando e sempre pedindo licença pros pesquisados, porque realmente o mais importante
é essa relação pesquisador e pesquisado, essa construção dessa relação de
respeito e de afeto. Já aconteceu de eu ir em campos, principalmente quando são
rituais religiosos e às vezes em terreiros, em que o pesquisado por já ter
sofrido preconceitos e outras situações, pedem para não registrar aquele
momento, então sempre respeitamos. Também queria destacar que sempre temos o
compromisso de devolver para os pesquisados os materiais registrados, os
audiovisuais, fotos e vídeos. É muito importante eles estarem se vendo
também.
Uma
das ferramentas para o desenvolvimento do processo criativo se dá através do
Dojo, um risco/círculo feito com giz no chão no entorno do corpo, onde o
intérprete libera, projeta e elabora os seus impulsos e conteúdos internos.
Nós, integrantes do grupo, ficamos intrigados por esse processo específico. É
um processo guiado? A diretora realizava algum tipo de provocação para os
intérpretes? Ou vocês eram livres para improvisar dentro do tema proposto?
Larissa:
Ele é dirigido pela diretora, ela conduz todo o processo. Nessa condução, não é
uma provocação é uma condução, pode fazer parte tanto ela estar falando
bastante e levando a cada momento para algum lugar, quanto pode fazer parte
dessa condução o silêncio. Então a diretora tem que saber os momentos de
silenciar e deixar correr mais tempo, e os momentos que ela tem que entrar mais
naquilo que está acontecendo e direcionar mais para onde que aquilo está indo.
Então essa condução da diretora é algo bem sensível que envolve uma
sintonização cinestésica com quem está lá, é uma aproximação bem física, que
estamos exercitando fazer agora via computador, mas que é possível também ter
essa sintonia e entrar lá junto pela tela, para eu tentar sentir o que o
intérprete está sentindo e saber o momento que ele está precisando liberar
movimento e descarregar, ou momentos em que tem algum movimento apontando em
alguma parte do corpo. A diretora vê que tem alguma coisa ali querendo vir
naquele ombro esquerdo, então fala “Repara naquele ombro esquerdo, qual a
sensação agora aí? O que está acontecendo?”, por meio dessa provação, a pessoa
leva sua atenção e consegue trazer aquilo que estava no ombro para o corpo
todo, então tem uma condução. Às vezes o diretor até dá um trabalho para o
intérprete fazer sozinho no dia seguinte, explorar certas coisas para depois
conversarem, mas sempre está dentro dessa condução, não fica solto. Não
chamamos de improvisação, porque é uma pesquisa de situações específicas para o
corpo, porque a improvisação ela é uma coisa em si, já é um fim em si, posso
ter uma obra cênica que seja de improvisação. E o laboratório ele é um meio, é
um trabalho específico com um estado de consciência específico, que é uma
percepção bem ampliada do corpo, onde eu vou percorrendo esses circuitos de
movimento, sensação, imagem, emoção, e a partir disso, vou vendo o que o meu
corpo vai trazer de conteúdos internos, e logo vai sendo construído uma
paisagem que começa a se repetir. Se é um corpo que está em uma cabana no canto
de um terreiro de terra batida, o eixo desse corpo é nessa cabana, e isso
começa a se repetir, então vai se desenvolvendo uma situação.
Mariana:
É importante, não é uma improvisação, tem uma técnica. A técnica dos sentidos é
uma ferramenta dentro do BPI, então é importante diferenciar isso.
Paula:
Tem a técnica dos sentidos e tem a preparação, que é a técnica de dança do BPI,
que a estrutura física também é simbólica. Para fazer Dojo tem toda a
preparação do intérprete pro Dojo e a partir da condução da direção,
desenvolver. Como a Larissa colocou, tem toda uma preparação mesmo.
Larissa:
Só que tudo isso que a diretora faz, faz a gente se sentir livre, não nos
sentimos presos, é justamente um caminho para te libertar e não te aprisionar.
Então a sensação é de estar livre.
Mariana:
Tem uma segurança ali na delimitação do círculo, o Dojo, justamente essa
delimitação física no espaço, ele tem a ver com alguns conceitos de fronteira
corporal, a própria palavra “Dojo” dizendo de um espaço seguro para essa projeção.
Então delimitar o espaço é muito importante para esse processo, ele dá um
limite do seu conteúdo, limite do seu corpo, esse espaço delimitado às vezes é
pequeno e às vezes ele vai se expandindo, tendo essa relação direta com a
expansão e limitação do seu próprio conteúdo.
Larissa:
Tem a ver também com a kinesfera, que é esse espaço que está além do meu corpo,
mas que faz parte do meu corpo. Tem a ver com a imagem corporal também, você
vai adquirindo uma ampliação da percepção muito grande, que quando você pisa
fora do Dojo você sente que saiu e abre o olho, você sente que saiu sem abrir o
olho. O Dojo começa com um risco de giz, porque é uma coisa mais simples de
fazer, mais prática, mas ele não é em si uma coisa de giz, ele pode ser feito
com barbante, com tecidos, com o que tiver na mão para fazer. Inclusive depois
que já vai tendo os materiais, por exemplo a cabana de palha, eu posso fazer o
meu contorno de palha. Como é um espaço que você trabalha com uma sensibilidade
muito aberta, ele também tem a função de você estar lá com os seus conteúdos, e
não captar conteúdos que não são seus. Então ele tem essa delimitação tanto
para você projetar os seus conteúdos e enxergá-los, quanto para não vim coisas
de fora para dentro e você não acabar misturando coisas que são do seu
conteúdo, da sua pesquisa de campo, não misturar coisas que são do arredor,
principalmente se é um espaço muito conturbado que você está trabalhando.
Paula:
Queria só completar que, além de todo esse trabalho de preparação e desenvolvimento
do Dojo, a direção sempre orienta o intérprete. No final, quando o diretor está
presente, é feito um feedback, um retorno, uma conversa, sobre como foi o Dojo,
o que veio durante ele, puxar consciência do intérprete. Os intérpretes também
têm os diários de Dojo, ele escreve para ele começar a entender e a direção
acompanhar o que mais está emergindo do corpo, isso é super importante dentro
do processo. Então são essas várias ferramentas do método que ajudam na
realização do Dojo, para que ocorra esse desenvolvimento criativo.
Durante
nossa pesquisa pelos espetáculos produzidos pelo núcleo, vimos que o “Corpo
como Relicário” foi um dos maiores projetos, e que as vocês três estavam
presentes, Larissa e Mariana atuando, e Paula na co-direção. Nele, foram realizadas
pesquisas de campo com Arturos (MG), os folguedos do Boi (MG, MA, MT), os
ciganos (SP), as baianas de escolas de samba (SP), as quebradeiras de coco
babaçu (TO), as parteiras Pankararu (PE) e as benzedeiras ribeirinhas (AM).
Fora os 11 dias em Pirenópolis, Goiás, quando todo o grupo fez pesquisas de
campo nas festas do Divino. Como se deu a elaboração de um projeto tão complexo
como esse? Como foi realizada a ligação entre tantas comunidades e culturas
aparentemente distintas para a elaboração de um único espetáculo?
Larissa:
O corpo como relicário foi um projeto muito especial e diferenciado dos outros,
porque eram sete intérpretes que todos já tinham muita experiência com o método
BPI e todos já chegaram para esse espetáculo tendo uma personagem, tendo uma
pesquisa de campo feita anteriormente. Quando fomos fazer a pesquisa de campo,
a proposta foi levar as personagens para campo, foi uma pesquisa de campo um
pouco diferente, porque além da gente como intérprete ir, tiveram dias que as
personagens foram fazer pesquisa de campo. Quando você está com a personagem,
você entra nesse grupo social diferente do seu, então você tem um olhar para
sociedade, que é um olhar a partir desse grupo e não um olhar a partir do seu
olhar, da sua classe social, do seu modo de pensar. É como se você tivesse
aquele outro modo de pensar e aquele outro lugar de fala, lugar de fala do
personagem e não o seu lugar de fala de nascimento. Então a gente fez essa
experiência das personagens se colarem em campo e atuarem em campo, depois
fizemos os laboratórios lá em Pirenópolis, nós alugamos uma casa e tinha espaço
para todos fazerem seus Dojos, a Graziela dirigiu o Dojo lá na casa mesmo. O
que ligou todo mundo foi essa pesquisa de Pirenópolis, porque cada um já tinha
a sua pesquisa de antes e o tema do relicário. Então o que era o relicário de
cada um? O que era o relicário de cada personagem? O relicário como esse lugar
que traz essa fagulha de luz, de contato com esse sagrado, o que dá passagem
para esse contato com esse sagrado nessa personagem. A gente foi fazendo uma
ligação, cada um tinha o seu espaço individual e o grande espaço no meio onde
tinham os encontros. O próprio desenvolvimento do trabalho, com a direção da
Graziela, foi tendo os momentos de conexão das diferentes personagens, ela ia
elaborando esses momentos que aconteciam, e outros ela foi construindo a partir
do que estava vindo em cada um.
Paula:
E foi uma imersão, é importante falar isso, foi um projeto que a Graziela já
idealizava anos atrás e foi construindo, um projeto que foi uma escola para
todos nós, até para quem ajudou na iluminação e toda a parte técnica. Ficávamos
em um dos galpões praticamente todos os dias da semana, feriado e finais de
semana, quase que o dia inteiro trabalhando com ela. Como a Larissa falou, cada
intérprete já tinha os personagens, já tinha um conteúdo de grupo e muita
pesquisa, e os laboratórios iniciais começaram a emergir algumas relações entre
os personagens, e quando eles foram para campo e tiveram essa vivência lá, de
saírem mascarados com os personagens, que a figura do mascarado é uma figura
muito presente no Ciclo do Divino, foi muito especial. Depois, quando voltamos
novamente para o galpão, foi ali que realmente começou a se definir mais e foi
sendo construído o roteiro, a partir do que veio de cada um, de cada relicário
e da relação entre os sete relicários. Eu lembro que o pessoal até brincava e
falava que tínhamos que ver sete vezes o trabalho, porque era muito rico, tinha
o momento que víamos enquanto público, sete relicários, cada um acontecendo
alguma coisa, e tinha os encontros dessas personagens no grande meio, tinha ali
essa pesquisa que era em comum do Ciclo do Divino, que também é muito diversa,
tem os cavaleiros, os mascarados, as benzedeiras e ainda tem muitas outras
pesquisas que foram agrupadas. Tinha o momento também que propositalmente a
Graziela propôs que o público entrasse no meio, podendo se aproximar pertinho
de cada relicário, cada intérprete tinha essa proximidade com o público, e o
público escolhia para que relicário ir, podia até ir para mais de um. A
Graziela fazia perguntas o tempo inteiro, exatamente isso que a Larissa falou,
o que é o Divino para você? O que é o seu relicário? O que tem no seu
relicário, enquanto corpo e espaço? E foi a partir, não só dessas perguntas,
que foi sendo, aos poucos, construído todo esse trabalho.
Intérpretes mascarados na fábrica Flaskô, Sumaré, agosto de 2017. Foto: João Maria. Arquivo do Grupo de Pesquisa. |
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